The Bunny Game


3rd Aktion, Rudolf Schwarzkogler, 1965



A performance, enquanto prática artística, foi vulgarizada pela arte conceptual na década de sessenta do século passado. Através de acções do performer, que também poderiam juntar música ou poesia, os artistas respondiam à comodificação da arte, criando eventos únicos que, apesar de poderem ser repetidos, tornavam difícil a sua mercantilização. Esta prática interdisciplinar depressa se aliou ao uso da fotografia e do vídeo. Para além da exploração das suas especificidades como meio, os artistas também passaram a utilizar estas técnicas na performance como forma de arquivo e circulação. Nem sempre o artista estabelecia um plano antes da sua realização ou procurava responder às expectativas do público. O artista pretendia assim estilhaçar as convenções estabelecidas, no que diz respeito à produção e recepção da arte, estimulando o próprio público a tornar-se parte da acção. No Japão (Gutai) e na Áustria (Accionistas Vienenses), grupos de artistas dedicavam-se há algum tempo a formas radicais de performance.  Isto incluía  o uso do corpo como suporte artístico, utilizando-o em acções violentas  e extremas (sangue, mutilações e escatologia) que questionavam os seus limites e também a passividade do espectador. A influência destes artistas foi determinante para o rumo que tomou a arte produzida pelas gerações futuras.

A ideia para The Bunny Game (2010) foi sugerida pela performer Rodleen Getsic ao realizador Adam Rehmeier, a partir de acontecimentos relacionados com um rapto a que a artista tinha sido sujeita. Antes das filmagens, Rodleen Getsic empreendeu um período de preparação física e espiritual que envolveu encontros com um xamã no Peru e quarenta dias de jejum. Sem um guião pré-definido, a equipa de filmagens foi apenas constituída por Adam Rehmeier, Rodleen Getsic e um (não) actor, Jeff Renfro. O filme conta a história da prostituta The Bunny que é raptada por um camionista que a submete a uma série de torturas e humilhações violentas, sem que saibamos concretamente quais os motivos para tais acções.  Nas declarações para a apresentação pública do filme,  o realizador afirmou que durante as filmagens a actriz sofreu na pele toda a violência que vemos, sem recorrer a duplos ou a qualquer outro tipo de recurso. Perante isto, a etiqueta torture porn foi logo colada a The Bunny Game. 


The Bunny Game (Adam Rehmeier, 2010)






















Aquando da tentativa para lançar o filme em DVD no Reino Unido, o British Board of Film Classification (BBFC)  considerou ser incapaz de o classificar, mesmo que o realizador procedesse a cortes, inviabilizando assim a sua distribuição. Nos últimos anos, esta reacção do BBFC em relação a títulos provenientes de territórios do cinema de terror mais extremo não é nova. The Human Centipede 2 (Tom Six, 2011) e A Serbian Film (Srdjan Spasojevic, 2010) tiveram tratamento semelhante mas, depois de pequenos cortes, acabaram por passar na avaliação. O que é novo, pelo menos num período mais recente, é a recusa do BBFC em  classificar The Bunny Game mesmo que fosse sujeito a cortes. O argumento apresentado é que os pressupostos do filme são inaceitáveis para serem acedidos, ainda que livremente, por um adulto. Segundo o BBFC "the principal focus of The Bunny Game is the unremitting sexual and physical abuse of a helpless woman, as well as the sadistic and sexual pleasure the man derives from this. The emphasis on the woman’s nudity tends to eroticise what is shown, while aspects of the work such as the lack of explanation of the events depicted, and the stylistic treatment, may encourage some viewers to enjoy and share in the man’s callousness and the pleasure he takes in the woman’s pain and humiliation." Obviamente, encontramos aqui um excesso de zelo do BBFC na condução das directrizes que lhe são atribuídas, em que sobrepõe a sua acção à livre escolha que um adulto deve ter, entre ver ou não o filme. É verdade que a decisão se resume apenas a território britânico, mas sabemos que noutros países, incluindo Portugal, o acesso a filmes "problemáticos" é feito apenas a partir das edições inglesas ou americanas em DVD, cujas companhias acabam por fazer a distribuição para todo o mundo. Ainda assim, se com esta decisão o BBCF acabou por limitar a audiência do filme, também lhe forneceu publicidade gratuita que, de outra maneira, talvez o condenasse a um discreto lançamento directo para VOD (Video on  Demand). E ainda sem distribuição, já se nota o culto. 

Apesar da simpatia criada com The Bunny Game devido à decisão do BBCF,  consideramos que, ao contrário dos mencionados The Human Centipede e A Serbian Film,  o filme não está à altura da publicidade que lhe foi concedida. No papel, The Bunny Game tinha os ingredientes para se tornar um bom filme. O argumento intrigante, um jovem realizador com vontade de arriscar, a tensa música industrial, a impecável fotografia a preto e branco onde não nos é permitido ver a cor do sangue, e ainda dois óptimos actores. E não são os primeiros quinze minutos que deixam de corresponder às expectativas. Com uma montagem crua, acompanhamos The Bunny na sua rotina pelas estradas californianas (drogas, sexo, drogas, comida, drogas, sexo e por aí adiante). Bem cedo percebemos que algo muito mau lhe está a acontecer e suspeitamos que algo muito pior ainda está para vir. No entanto, a partir do encontro de The Bunny com Hog, o filme entra num calvário de agressões onde as estações, por tão repetitivas que se apresentam, pouco ou nada acrescentam à narrativa. Se há algo a considerar de violento no filme não são as torturas a que a protagonista é sujeita mas sim o dispositivo criado por Rehmeier que rapidamente provoca o alheamento do espectador. A sala de cinema não é a galeria de arte, nem estão em causa questões relacionadas com a recepção da obra. Na mesa de edição o realizador  desbarata todo o bom material que registara e apresenta-nos um filme que a querer testar limites, são os da paciência do espectador.

Curiosamente, The Bunny Game tem algumas semelhanças, para além do nome, com um outro filme onde  também acompanhamos o protagonista num percurso pela Califórnia. Falamos de The Brown Bunny (2003) de Vincent Gallo (também actor, produtor, realizador, editor e director de fotografia do filme). Estreado no Festival de Cannes recebeu reacções violentas por parte da crítica presente que abandonou a sala ainda antes do fim da projecção. Grande parte da celeuma relacionava-se com o blow job (aparentemente real) entre Gallo e Chloë Sevigny, que fechava o filme e que a crítica acusava de gratuito. Em The Bunny Game existe uma cena semelhante mas nos primeiros minutos do filme. Se no filme atmosférico de Gallo representava um fim de percurso, onde finalmente voltávamos a pôr os pés na terra, aqui, num dos melhores momentos do filme, é o ponto em que partimos da terra em direcção ao inferno. Depois da estreia em Cannes, Vincent Gallo remontou o filme para uma versão mais curta que recolheu os louvores da crítica que antes o tinha rejeitado.  The Bunny Game só teria a ganhar se Adam Rehmeier também o pudesse repensar. Consta que Rodleen Getsic considerou enriquecedor o exercício purificador que enfrentou em The Bunny Game. Ainda bem para ela.  //

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